quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O VERÃO É CAPA DOS POBRES

"Almocei na fronteira do ar livre, rente a uma janela aberta. Era já o meio
da tarde, e o restaurante estava deserto: o sol prendera-me na praia, envolvera-me
de torpor, e entre o banho e a areia se tinham escoado as horas. É uma sensação
agradável esta de ter o corpo um pouco áspero de sal, a antegozar o duche que nos
espera em casa. E enquanto a costeleta de vitela não vem, vai-se beberricando o vinho
fresco e estendendo a manteiga em bocadinhos de pão torrado, para enganar a fome
subitamente acordada. Vida boa.
O momento é tão perfeito que podemos falar de coisas importantes sem que
as vozes tenham de subir, e nenhum de nós pensa em ganhar no diálogo e ter mais
razão do que a pode ter um comum ser humano que respeite a verdade. Além disso, é
verão e, como eu disse, estamos na fronteira do ar livre. A aragem faz estremecer umas
plantas cheirosas a que podemos chegar com os dedos e em volta das quais zumbem os
insectos do tempo. Quebrada pela folhagem, há uma réstia de sol que se derrama pelas
madeiras envernizadas da janela. Vida boa.
Temos a pele doirada e sorrimos muito. No interior do restaurante levanta-
se uma grande labareda: é a cozinha que oferece os seus mistérios. Logo a seguir o
empregado traz a costeleta, rescendente no seu molho natural, e nós infringimos as
mais comezinhas regras da gastronomia mandando adiantar-se mais vinho branco. E
ela vem, a garrafa, com a sua transpiração gelada e o truque mágico de embaciar os
copos que a recebem. Ah, vida boa, vida boa.
Estamos agora calados, absorvidos na delicada operação de separar a carne
do osso. Sob o gume da faca as fibras macias separam-se sem custo. O molho penetra
nelas, aviva-lhes o sabor-oh, que bom é comer assim, depois de um ardente dia de
praia, no restaurante de janelas abertas, com perfumes de flores e este cheiro maior do
verão.
Voltamos a conversar, dizemos coisas vagas e lentas, inteligentes, numa
plenitude de bem-aventurados. O sol, que desceu um pouco mais, desliza nos copos,
acende fogos no vidro e dá ao vinho uma transparência de fonte viva. Sentimo-nos bem,
com o restaurante só para nós, rodeados de madeiras fulvas e toalhas coloridas.
É nesta altura que se dá o eclipse. Uma sombra interpõe-se entre nós e o
mundo exterior. O sol afasta-se da mesa violentamente, e a mão de um homem passa
a moldura da janela, avança e fica imóvel por cima da mesa - de palma para cima. O
gesto é simples e não traz palavras a acompanhá-lo. Apenas a mão estendida, à espera,
pairando como uma ave morta sobre os restos do almoço.
Ninguém fala. A mão recolhe-se apertando a esmola, e, sem agradecer, o
homem afasta-se. Entreolhamo-nos devagar, com os lábios deliberadamente cerrados.
De repente, tudo sabe a inútil e a cobardia. Depois, com mil cautelas, pegamos no
carvão em brasa. Se não estivéssemos a almoçar, teríamos dado a esmola? E que teria
acontecido se a recusássemos? Sentiríamos depois mais remorsos que de costume? Ou
houve simplesmente o medo de que a mão seca e escura descesse como um milhafre
sobre a mesa e arrancasse a toalha, no meio do estilhaçar dos vidros e das louças, num
interminável e definitivo terramoto?"

Saramago, José. A bagagem do viajante: crônicas – São Paulo. Cia das Letras, 1996.












PERGUNTAS SOBRE O TEXTO

1 - Comente, a partir de trechos do texto, as mudanças que ocorrem na cena narrada após a chegada do pedinte.
2 -  O que você acha que a interferência do pedinte causou nos que almoçavam? Por que?
2 - De que modo o título do conto se relaciona com os acontecimentos narrados?
3-  Elabore possíveis significações para a mudança violenta da luminosidade no conto (luz/eclipse).

De quem que é?

     
     Filho e neto de camponeses, José Saramago nasceu na aldeia de Azinhaga, província do
Ribatejo, Portugal. Publicou o seu primeiro livro, um romance, Terra do Pecado, em
1947, tendo estado depois largo tempo sem publicar (até 1966). Trabalhou durante doze
anos numa editora, onde exerceu funções de direção literária e de produção. Colaborou
como crítico literário na revista Seara Nova. Em 1972 e 1973 fez parte da redação
do jornal Diário de Lisboa, onde foi comentador político, tendo também coordenado,
durante cerca de um ano, o suplemento cultural daquele vespertino. A partir de 1976
passou a viver exclusivamente do seu trabalho literário, primeiro como tradutor, depois
como autor. Em Fevereiro de 1993 decidiu repartir o seu tempo entre a sua residência
habitual em Lisboa e a ilha de Lanzarote, no arquipélago das Canárias (Espanha). Foi
casado com Pilar Del Rìo, vindo a falecer em 18 de junto de 2010.
Texto adaptado de conteúdo disponível em http://www.josesaramago.org , (acesso em 9/2010)