quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Comentando o texto...


    O Verão é a Capa dos Pobres, do escritor português José Saramago, nos apresenta, de início, um cenário agradável, cheio de luminosidade em cada pequeneza: nos corpos ainda ásperos do sal da praia, na janela aberta, na frescura do vinho, na aragem que traz o cheiro das plantas rodeadas de insetos, na réstia de sol no verniz da madeira...
     É a apresentação do verão. Notemos: ela ocupa 5 parágrafos – a maior parte do texto. É possível, neste tempo de leitura, nos deixar ser envolvidos pelo momento narrado, a ponto de relaxarmos até mesmo da lembrança do título, cuja presença anunciada – a dos pobres – seria paradoxal e até mesmo absurda agora: temos somente o verão.
“É nesta altura que se dá o eclipse. Uma sombra se entrepõe entre nós e o mundo exterior (...)”.
     Talvez, por esse mesmo motivo, tal presença precise irromper tão abruptamente. Diante de tão longa cena ensolarada, é necessário que seu contraste tenha a dimensão e a violência de um eclipse; é preciso que ele apareça na forma de uma sombra que não se pode ignorar. Sua atitude, de uma simplicidade que chega a ser imperativa, é de alguém que passa para tomar o que lhe é de direito: “O gesto é simples e não traz palavras para acompanhá-lo. Apenas uma mão estendida, à espera, pairando como uma ave morta sobre os restos do almoço”.
     Após a saída do pobre, após o choque do grupo, dos silêncios cerrados e dos olhares, o sol não retorna. Resta apenas seu efeito, o efeito do calor exagerado: “Depois, com mil cautelas, pegamos no carvão em brasa”. Porém, é como se as causas fossem invertidas e o carvão em brasa (algo que queimou), fosse resultado não do sol, mas da sombra.


Tem a ver com o que?


Com a TEOLOGIA DO TRASTE do Manoel de Barros.
Quer ver?



As coisas jogadas fora por motivo de traste

são alvo da minha estima.

Prediletamente latas.
Latas são pessoas léxicas pobres porém concretas.
Se você jogar na terra uma lata por motivo de
traste: mendigos, cozinheiras ou poetas podem pegar.
Por isso eu acho as latas mais suficientes, por
exemplo, do que as idéias.
Porque as idéias, sendo objetos concebidos pelo
espírito, elas são abstratas.
E, se você jogar um objeto abstrato na terra por
motivo de traste, ninguém quer pegar.
Por isso eu acho as latas mais suficientes.
A gente pega uma lata, enche de areia e sai
puxando pelas ruas moda um caminhão de areia.
E as idéias, por ser um objeto abstrato concebido
pelo espírito, não dá para encher de areia.
Por isso eu acho a lata mais suficiente.
Idéias são a luz do espírito - a gente sabe.
Há idéias luminosas - a gente sabe.
Mas elas inventaram a bomba atômica, a bomba
atômica, a bomba atôm..................................
.......................................................Agora
eu queria que os vermes iluminassem.
Que os trastes iluminassem.


E com o balanço do Drummond. Olha só:

Balanço - Carlos Drummond de Andrade

A pobreza do eu

a opulência do mundo


A opulência do eu
a pobreza do mundo

A pobreza de tudo
a opulência de tudo

A incerteza de tudo
na certeza de nada.


quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O VERÃO É CAPA DOS POBRES

"Almocei na fronteira do ar livre, rente a uma janela aberta. Era já o meio
da tarde, e o restaurante estava deserto: o sol prendera-me na praia, envolvera-me
de torpor, e entre o banho e a areia se tinham escoado as horas. É uma sensação
agradável esta de ter o corpo um pouco áspero de sal, a antegozar o duche que nos
espera em casa. E enquanto a costeleta de vitela não vem, vai-se beberricando o vinho
fresco e estendendo a manteiga em bocadinhos de pão torrado, para enganar a fome
subitamente acordada. Vida boa.
O momento é tão perfeito que podemos falar de coisas importantes sem que
as vozes tenham de subir, e nenhum de nós pensa em ganhar no diálogo e ter mais
razão do que a pode ter um comum ser humano que respeite a verdade. Além disso, é
verão e, como eu disse, estamos na fronteira do ar livre. A aragem faz estremecer umas
plantas cheirosas a que podemos chegar com os dedos e em volta das quais zumbem os
insectos do tempo. Quebrada pela folhagem, há uma réstia de sol que se derrama pelas
madeiras envernizadas da janela. Vida boa.
Temos a pele doirada e sorrimos muito. No interior do restaurante levanta-
se uma grande labareda: é a cozinha que oferece os seus mistérios. Logo a seguir o
empregado traz a costeleta, rescendente no seu molho natural, e nós infringimos as
mais comezinhas regras da gastronomia mandando adiantar-se mais vinho branco. E
ela vem, a garrafa, com a sua transpiração gelada e o truque mágico de embaciar os
copos que a recebem. Ah, vida boa, vida boa.
Estamos agora calados, absorvidos na delicada operação de separar a carne
do osso. Sob o gume da faca as fibras macias separam-se sem custo. O molho penetra
nelas, aviva-lhes o sabor-oh, que bom é comer assim, depois de um ardente dia de
praia, no restaurante de janelas abertas, com perfumes de flores e este cheiro maior do
verão.
Voltamos a conversar, dizemos coisas vagas e lentas, inteligentes, numa
plenitude de bem-aventurados. O sol, que desceu um pouco mais, desliza nos copos,
acende fogos no vidro e dá ao vinho uma transparência de fonte viva. Sentimo-nos bem,
com o restaurante só para nós, rodeados de madeiras fulvas e toalhas coloridas.
É nesta altura que se dá o eclipse. Uma sombra interpõe-se entre nós e o
mundo exterior. O sol afasta-se da mesa violentamente, e a mão de um homem passa
a moldura da janela, avança e fica imóvel por cima da mesa - de palma para cima. O
gesto é simples e não traz palavras a acompanhá-lo. Apenas a mão estendida, à espera,
pairando como uma ave morta sobre os restos do almoço.
Ninguém fala. A mão recolhe-se apertando a esmola, e, sem agradecer, o
homem afasta-se. Entreolhamo-nos devagar, com os lábios deliberadamente cerrados.
De repente, tudo sabe a inútil e a cobardia. Depois, com mil cautelas, pegamos no
carvão em brasa. Se não estivéssemos a almoçar, teríamos dado a esmola? E que teria
acontecido se a recusássemos? Sentiríamos depois mais remorsos que de costume? Ou
houve simplesmente o medo de que a mão seca e escura descesse como um milhafre
sobre a mesa e arrancasse a toalha, no meio do estilhaçar dos vidros e das louças, num
interminável e definitivo terramoto?"

Saramago, José. A bagagem do viajante: crônicas – São Paulo. Cia das Letras, 1996.












PERGUNTAS SOBRE O TEXTO

1 - Comente, a partir de trechos do texto, as mudanças que ocorrem na cena narrada após a chegada do pedinte.
2 -  O que você acha que a interferência do pedinte causou nos que almoçavam? Por que?
2 - De que modo o título do conto se relaciona com os acontecimentos narrados?
3-  Elabore possíveis significações para a mudança violenta da luminosidade no conto (luz/eclipse).

De quem que é?

     
     Filho e neto de camponeses, José Saramago nasceu na aldeia de Azinhaga, província do
Ribatejo, Portugal. Publicou o seu primeiro livro, um romance, Terra do Pecado, em
1947, tendo estado depois largo tempo sem publicar (até 1966). Trabalhou durante doze
anos numa editora, onde exerceu funções de direção literária e de produção. Colaborou
como crítico literário na revista Seara Nova. Em 1972 e 1973 fez parte da redação
do jornal Diário de Lisboa, onde foi comentador político, tendo também coordenado,
durante cerca de um ano, o suplemento cultural daquele vespertino. A partir de 1976
passou a viver exclusivamente do seu trabalho literário, primeiro como tradutor, depois
como autor. Em Fevereiro de 1993 decidiu repartir o seu tempo entre a sua residência
habitual em Lisboa e a ilha de Lanzarote, no arquipélago das Canárias (Espanha). Foi
casado com Pilar Del Rìo, vindo a falecer em 18 de junto de 2010.
Texto adaptado de conteúdo disponível em http://www.josesaramago.org , (acesso em 9/2010)